Histórias da cidade que sumiu do mapa.
Conheci o Amantino após uma sessão num antigo cinema na rua João Pinto. O “Elegante Snooker” ficava quase em frente ao Cine Coral, e era para ali que a curriola se chegava, logo após a exibição, que era para não perder nenhum boato novo. Era um daqueles botecos onde toda conversa rolava fácil e onde todos os segredos da cidade perdiam a condição de segredo. Aquela sessão tinha sido especialmente agoniada, pois os “Dez Mandamentos” tinha uma duração de quase 4 horas de projeção,e as gargantas e ouvidos já estavam na seca, roçando de tanta curiosidade sobre as futricas do Elegante.
Quando eu cheguei no botequim o barraco já estava armado, e o homem já estava falando alto. Era o Amantino.
Foi daí que eu tomei conhecimento da figura.
Acontece, e ao que parece, o dito sempre foi um sujeito respeitador das coisas, tanto-do-céu-como-da-terra. Pacato, segundo opinião corrente.
Cumpridor de suas responsabilidades, quitador de carnês,cortês e, ao menos que se saiba, respeitador dos bons costumes. Desde cedo foi de frequentar as liturgias de domingo, inclusive como acólito na Igreja de SãoFrancisco dos Pobres, sempre bem-quisto pelas beatas e beneméritos.
Tinha lugar garantido para carregar o dossel na procissão do Passos. Era o mais respeitado cantador de bingo na Festa da Laranja. Acreditava piamente na possibilidade de mudar o mundo,e as coisas-lá-do-céu-aqui-na-terra, seriam as provas dessa possibilidade.
Mas também acreditava nas coisas seculares. Como um policarpo moderno, participou ativamente da campanha “O Petróleo é Nosso”. Queria “Diretas Já”. Acreditou em juízes, procuradores, advogados. Estava lá e, inclusive, aplaudiu, quando o prefeito anunciou a despoluição da Baía Norte.
Acontece que o Amantino, de tanto ver e ouvir bandalheiras nas esquinas deste mundo, já andava,há uns tempos, com a pulga atrás da orelha. Andava pensativo, desconfiado das coisas-do-céu-e-da-terra. Tinha pastor se dando bem no dízimo.Tinha ministro batizando edital, general cantando jogo do bicho. O mundo estava mesmo muito
estranho. Mas sempre tem um dia em que a onda leva o castelo de areia.
Acontece que toda sua fé e esperança nas coisas-do-céu-e-da-terra foi, metaforicamente, por água abaixo naquela sessão do Cine Coral. Aquela cena
foi uma verdadeira epiphania domini profanus, como explicou mais tarde o Prof.
Jordi. Uma iluminação ao contrário. Uma verdadeira gota d ́água na pia benta.
De repente,tudo ficou muito claro para Amantino. A cena em que Moisés,
supostamente, afastava as águas do Mar Vermelho para que os hebreus
atravessassem sem se molhar,descortinou, na mente de Amantino, a tela límpida do ceticismo. Vislumbrou, nitidamente, o simulacro pintado de realidade. Desnudou as vestes divinas. Jogou ao chão o sabonete no chuveiro dos homens. Tudo agora era real. Não havia mais mistério nas coisas. Tudo nu e cru.
Aquela cena mosaica, olhando bem, era realmente muito mal feita.
-Os homens, deliberadamente, semeiam as ervas-daninhas para amargar a salada saudável! Os homens, deliberadamente,misturam joio ao trigo para abatumar o pão.Vocês culpam o Grande Ceifador pelas mazelas da natureza,quando,na verdade os culpados somos eu e você.
O Prof. Jordi que,das letras e do mundo tudo sabe, e que, das alcovas e salões a todos conhece, saboreava, blasé, um Romópis do Elegante, o qual ele, particularmente, considerava o melhor petisco já inventado no céu-e-na-terra.
Mesmo sem ninguém perguntar ele falou, com sua infinita, soberana e sintética capacidade de explicar as coisas do mundo:
Amantino agora é Apóstata!
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